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TEXTOS

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O trabalho de Carlos Matuck:

 

 

Carlos Matuck nasceu em São Paulo, em 1958. Desenhou desde muito cedo, influenciado por seus dois irmãos artistas, Rubens e Artur. Seus primeiros trabalhos foram em técnicas tradicionais: grafite, carvão, lápis de cor, nanquim, pastel, guache e aquarela.

No final dos anos 70, fez dois anos de gravura em metal com Sérgio Fingermann, além de pesquisas com colagens e carimbos. Em 1977, conheceu Alex Vallauri, pioneiro do grafite em São Paulo. Até 1985 trabalhou com intervenções urbanas, grafitando os muros de São Paulo em incursões noturnas, com spray à mão livre e estampando imagens previamente recortadas (stencil art). Também realizou murais e painéis de grandes dimensões. A partir de 1980, publicou ilustrações em jornais e revistas, desenhou e roteirizou histórias em quadrinhos, projetou capas de livros. Em 1985, expôs murais na 18a. Bienal de São Paulo. Atualmente dedica-se à pintura, desenhos e ilustrações, painéis, histórias em quadrinhos e murais.

 

De 01/04/1989 a 06/01/1990, Carlos realizou uma série de ilustrações para a Folha de São Paulo, na seção Primeira Leitura, do caderno Letras. O trabalho partiu de um convite do editor Marco Chiaretti. Publicado periodicamente aos sábados, Letras substituiu o Folhetim, em 01/04/1989. Foi substituído pelo Mais! em 16/02/1992.

 

As ilustrações eram feitas em casa, pois facilitava a pesquisa com as fontes visuais. O caderno saía aos sábados. O texto era entregue na terça-feira, no final da tarde, quando era feita uma primeira leitura. A quarta-feira inteira era dedicada ao trabalho e na quinta-feira de manhã a imagem era entregue.

 

Nenhum editor de arte, em momento algum, entrou em contato com ele durante esse período para qualquer tipo de interferência ou mesmo avaliação de seu trabalho. Carlos avalia que essa interlocução seria benvinda, mas não aconteceu: “Eu gostaria que tivesse acontecido, mas era impossível, pois era um descabelamento e era justamente nesse ritmo que eu não queria estar, pois eu preferia me descabelar sozinho. Hoje eu penso - puxa, será que o editor gostava e dava mais espaço para isso? Até hoje eu não sei quem é que diagramava. Depois de um certo tempo passaram para a última página... devem ter gostado.” (depoimento: setembro/2003)

 

Grande parte dos estudos preparatórios realizados para esses trabalhos foram organizados pelo próprio Carlos em dois portfolios encadernados (de 0.67 x 0.47) e permitem uma análise de vários aspectos de seu processo. Podemos observar que para realizar as ilustrações, Carlos lançou mão dos diversos procedimentos que formam o conjunto de seu trabalho plástico. Por conta disso, antes de analisar o seu percurso para realizá-las, vamos nos deter um pouco nesse conjunto de recursos que foi utilizado, com a intenção de tornar evidente essa relação entre os procedimentos recorridos no calor do fechamento das edições e o seu repertório mais amplo, advindo do conjunto de seu trabalho plástico.

 

Traço:

Os estudos foram feitos com lápis e caneta hidrográfica. Carlos avalia que hoje em dia faria essas imagens com caneta tinteiro caligráfica, que permite a rápida transição do traço fino ao traço grosso, como um pincel: “Gosto de caneta tinteiro porque ela flui, é mais solta, gostosa, você consegue fazer uma hachura imitando bem as técnicas de onde a caneta hidrográfica é originária, que  na verdade é o bico de pena. Alguns desenhos que fiz parecem feitos com bico de pena.”

 

Carimbos e grafite:

Além das canetas, Carlos também utilizou carimbos nas ilustrações, de uma coleção que começou a partir de um encantamento por uma caixa de carimbos para crianças, cuja capa era típica dos anos 60. O hábito de colecioná-los foi incentivado pela amizade com Vallauri. Quando se conheceram, descobriram que tinham em comum o gosto por carimbos e grafite.

 

Foi Vallauri que apresentou a Carlos os carimbos Dulcemira, que impressionam pela diversidade de temas e dimensão. Eram, na verdade, clichês para impressão em anilina para papéis de embrulhos de lojas, daí suas grandes dimensões e diversidade de assuntos, vendidos numa pequena loja, no Centro de São Paulo.

 

Carlos utiliza os carimbos com uma ampla gama de finalidade: como elemento gráfico, como textura, como retícula. Em alguns casos, faz máscaras para carimbar, aproximando o carimbo e o grafite. A referência à linguagem dos quadrinhos é constante. Muitas vezes as figuras eram acompanhadas de balões preenchidos com imagens e não textos. “Era uma coisa recorrente no meu trabalho. Eu sempre fazia uma imagem dentro de outra. Eu fazia isso dentro das pinturas, também. Eu acho que dava um ritmo.”

 

No texto de apresentação para uma exposição na Casa das Rosas, Carlos conta que “a partir do encontro com Alex Vallauri, os carimbos e figuras de HQ que usavam em seus trabalhos passaram a ser aplicadas através de máscaras nas paredes das ruas. Inicialmente, os espaços da cidade eram marcados com imagens de leitura rápida, jogando com sua variação (espacial, cromática, textural); depois, as imagens passaram a se combinar em personagens e cenas; por fim, cenas inteiras eram antes concebidas, criando-se as máscaras necessárias para a sua realização.Nas últimas pichações, o processo de criação tornava-se cada vez mais similar ao de um mural”

 

Posteriormente, o uso continuado das máscaras sugeriu que se experimentassem os recortes em outros materiais, e que os próprios recortes passassem a fazer parte dos trabalhos, integrando-se ou não à pintura da qual eram antes só o instrumento, inaugurando uma ampla série de combinações, inclusive tridimensionais.

 

Colagens:

“Na verdade o carimbo e o grafite vieram com as colagens, porque esse é um procedimento que eu sempre usei, desde o final dos anos 70. Eu participava de muitas reuniões de professores, porque eu dava aulas no supletivo do Colégio Santa Cruz. O que eu mais fazia era ficar desenhando, porque falava-se muito. E eu conseguia ouvir e desenhar, para mim era perfeito. Teve uma época que eu comecei a desenhar a sério, fazendo figuras já pensando numa utilização posterior, eu desenhava mesmo. Cada dia levava uma caneta para ficar experimentando e tal. No fim eu acabava fazendo um trabalho com esses desenhos.”

 

Imagens de referência:

Uma das estantes da biblioteca de Carlos é exclusivamente dedicada à sua coleção de catálogos, fac-símiles das grandes lojas de departamento americanas ou inglesas, livros de clip art e copyright free. São milhares de imagens do século XIX e XX representando toda sorte de produtos industrializados ingleses elencados em pequenas gravuras.

 

“Comecei também a ir atrás de outras imagens prontas, além dos carimbos. Fui atrás de outras com mais qualidade. Aí eu fui especificamente por causa do grafite: para transformá-las em máscaras e pichar na cidade. E logo depois eu já estava usando isso tudo nas ilustrações. Misturou tudo, história em quadrinhos, grafite, e as vinhetas que encontramos naqueles livros. Também são chamadas copyright free, pois a utilização está liberada. São sempre coletâneas, sempre fora do contexto.”

 

Nas ilustrações, a textura das linhas, quando ampliadas, proporcionava um efeito gráfico que interessava bastante.

 

Retículas:

Em algumas das ilustrações, o sombreado foi feito com a retícula da Letraset combinadas com hachuras feitas com caneta – técnica aprendida com o quadrinista Luiz Gê, que utilizava bastante esse recurso. Em muitos casos, ele utiliza a retícula em cima da hachura, e por cima de tudo, um guache branco para dar luz, proporcionando um sombreado leve e orgânico.

 

“Eu usava bastante as retículas, porque achava que dava vivacidade. Eu adorava quando ela falhava, porque dava um cinza parecido com o das letras do jornal. Se você caprichava, saia perfeita. Mas eu gostava de fazer um pouco malhada. Usava uma mais grossa para fazer uma sombra um pouco maior.”

 

Rede de relações:

Vimos até aqui separadamente a origem de alguns recursos utilizados por Carlos no conjunto de seu trabalho plástico. Vamos agora acompanhar a forma como foram realizadas algumas ilustrações, numa tentativa de acompanhar o conjunto de escolhas dentro de uma perspectiva dinâmica.

Nessa perspectiva relacional, vamos acompanhar a testagem de hipóteses plásticas, deixando transparecer a natureza indutiva da criação, como parte de um pensamento visual. (Salles: Desenhos da criação, pag. 7)

 

Há, neste tipo de construção de imagem, um forte vetor, que é o seu necessário vínculo com o texto. Nesse sentido, cada procedimento escolhido passa a ser compreendido dentro de uma perspectiva comunicativa. As escolhas, portanto, serão norteadas por essa necessidade de aproximação com o texto. Por conta dessa relação, busquei apontar alguns aspectos do texto que foram explorados pelas imagens.

 

1a. ilustração realizada: texto de Marcelo Coelho

 

A 1a. pauta realizada, em 01/04/1989, trata de uma resenha escrita por Marcelo Coelho, intitulada Entrevistas comprimem as últimas idéias de Paris. O texto se refere a uma série de entrevistas realizadas pelo jornal “Le Monde”, editadas numa coleção de livros. Os entrevistados são intelectuais europeus, na maioria franceses.

 

Marcelo Coelho comenta a falta de talento de certos intelectuais para conceder entrevistas, apontando “rotundas trivialidades” proferida por eles. Avalia que muitas dessas personalidades decepcionaram e não disseram “praticamente nada”, e que essa série de livros reflete um ambiente intelectual em crise.

 

Movimento criador:

Analisando a seqüência de esboços que originou a ilustração, podemos observar o seguinte:

 

No primeiro esboço, uma multidão de escritores “fala” ao mesmo tempo. A fala é representada por balões de História em Quadrinhos (HQ), e no lugar de textos, há imagens.

 

Entre as representações dos escritores há uma clara tentativa de caricaturizar Umberto Eco e tipificar o intelectual francês com topete e cigarro.

 

No segundo esboço, a composição é organizada definindo um maior espaço para cada escritor e seus respectivos discursos. Os discursos, que no primeiro esboço eram basicamente representados por sinais de pontuação, ganham maior diversidade: estrelas, prédios, labirintos. Nesse desenho aparece uma idéia que será bastante aproveitada, que é a mão de um fumante, num tipo parecido com J. P. Sartre.

 

Numa terceira folha, mais pesquisas tipificando escritores. Um quadrado indica uma atenção especial a um fumante. Essa posição da mão será a base para os estudos particulares de mãos, realizados em folha de papel manteiga e bastante aproximada da versão final.

 

No quarto esboço, a grande quantidade de figuras representando escritores é limitada a três. Os balões e seus respectivos discursos também se restringem à temática do homem e se relacionam entre si. O homem é representado por um carimbo – recurso que lhe confere um caráter emblemático, como se o objeto tratado fosse de comum acordo dentro dos códigos culturais, no entanto tratado com diferentes pontos de vista: o homem em si, o homem na multidão, o homem obscuro.

 

Vale notar o procedimento utilizado no segundo balão: Para destacar o homem da multidão, foi feita uma máscara com o desenho do carimbo e carimbado ao redor a mesma imagem, provocando um efeito de destaque através da luz e ao mesmo tempo de semelhança com a multidão.

 

A versão final aproveita quase todos os apontamentos da versão anterior. O sombreado, que havia sido marcado com caneta, é produzido agora com retículas letraset. A concepção geral dos três personagens foi mantida, embora ainda tenha exigido um estudo particularizado para o terceiro, cujo balão foi mudado radicalmente. Enquanto as duas primeiras figuras discursam sobre o homem, o terceiro se refere a duas vacas, também representadas por carimbos. Com essa alteração, foi conferido um tom irônico à ilustração, em concordância com a crítica de Marcelo Coelho em relação aos disparates de alguns discursos.

 

Também podemos notar uma simetria entre imagem e texto no que se refere à quantidade de escritores representados e as três citações presentes no box, que exemplificam alguns trechos pouco felizes. 

 

Carlos comenta esse trabalho:

“A idéia desse desenho é a seguinte: São três pessoas falando, porque a matéria é sobre entrevista. Então são quase como três pessoas respondendo. Depois tem o reforço disso, da intenção delas darem uma entrevista, de mal humor ou de bom humor,  através do gesto da mão. Este está fumando, este está gesticulando e este está emburrado. O que está emburrado está pensando numas vacas, uma coisa meio assim. Este está meio em movimento. Na verdade ele está falando a mesma coisa que aquele, mas de um outro jeito. Este está falando sobre o homem, este está falando sobre o homem em negativo, e este aqui, mal humorado, só fala sobre vacas.” (...) “Também tem um outro aspecto que é que o Marcelo é mal humorado. Olha só esse trecho:-‘Alguns simplesmente decepcionam. Paul Feyerabend, defensor do anarquismo metodológico na ciência não diz praticamente nada’...”

 

É curioso, nessa análise que Carlos faz de seu próprio trabalho, a presença de um aspecto absolutamente pessoal. Ao representar o intelectual francês mal humorado, Carlos se divertiu em pensar que na verdade aquele era o próprio escritor da resenha. Sem descuidar da função comunicativa de seu trabalho, não deixou de fazer uma piada que tinha apenas ele como receptor.

 

O desenho:

A caricatura de Umberto Eco, de J. P. Sartre (que foram descartadas), e as tipificações do intelectual francês, são bons exemplos do traço de Carlos, marcado pelas suas referências de história em quadrinhos, facilmente reconhecíveis pela forma como incorpora balões às figuras.

 

Esse tipo de traço, que simplifica e exagera certas características faciais, foi comentado por Manfredo Massironi em sua obra Ver pelo Desenho.  Levando-se em conta que toda representação é uma interpretação e que qualquer codificação é sempre uma escolha, Massironi aponta que todo processo representativo gráfico é caracterizado pela dialética entre enfatismo e exclusão. Observa que em toda imagem gráfica é sempre mais fácil perceber aquilo que nela foi realçado do que aquilo que foi omitido. “Sob essa corda suspensa entre enfatismo e exclusão, move-se o desenhador, mantido em equilíbrio por dois contrapesos que dão maior segurança a seus passos, por um lado, a atenção às várias passagens da atividade perceptiva, por outro, a finalidade para que tende a figuração.” (1982: 73)

 

Sob essa ótica, Massironi considera que a deformação gráfica em que se baseia a caricatura se caracteriza pela ênfase, e comunica uma tal quantidade de significados adicionais que nem se faz notar a carência de sombras, texturas, fundos, etc. O desenho, privado de algumas informações, foi acrescido de outras, mantendo um equilíbrio. (1982: 70)

 

O equilíbrio entre a vastidão da percepção e a finalidade para que tende a figuração, apontado pelo autor, é bastante explícito no caso da imagem ilustrativa, pois, como já foi dito, a finalidade comunicativa deste tipo de imagem está sempre associada ao seu vínculo com o texto. Em grande medida, portanto, é externa ao desenhador, mas se vale de seu repertório sensível para estabelecer as ênfases e exclusões.

 

 

2o. artigo: 8 de abril de 1989

 

A partir da 2a. semana de trabalho, Carlos passou a ilustrar a sessão “Primeira Leitura”, que reproduzia trechos de obras recém lançadas no mercado editorial, acompanhadas de breves contextualizações.

 

A chamada de página do dia 08/04/1989 resume o conteúdo da matéria: Gibbon narra o declínio e a queda de Roma. Trata-se de um clássico da língua inglesa, escrito por Edward Gibbon em 1764. Acompanha o texto, explicações sobre o livro, o império romano e o escritor.

 

Carlos iniciou sua pesquisa buscando imagens de antigas gravuras representando soldados romanos o imperador e seu séquito. A partir dessas referências, desenhou alguns rostos – de soldados, do imperador. Dedicou especial atenção à imagem do cetro, mas não a utilizou. No canto inferior esquerdo da página, uma imagem com hachuras mais trabalhadas, feita diretamente com a caneta, caricaturiza um soldado romano. Seu semblante é anguloso e deformado, seus trajes aproveitam as referências da gravura.

 

Na versão final, um pequeno trecho de uma das gravuras é recortado, com a cabeça e o peito de um soldado. Atrás dele, um desenho de um soldado meio deformado, representado até a bacia, portando um elmo. Esse soldado aproveita claramente as características caricaturizadas do desenho anterior. Também aproveita a informação visual referente aos trajes, até a cintura, incluindo o elmo, da mesma imagem do soldado que foi recortada. Atrás dele, um terceiro soldado, ainda mais deformado e escuro.

A disposição dos soldados provoca entre eles uma relação semelhante a sombras, uns dos outros, evidenciando o conteúdo de decadência de um império.

 

Do ponto de vista procedimental, vale notar a pesquisa iconográfica sobre o tema, a restrição e investigação a partir da escolha de uma figura, o desenho de duas outras figuras realizadas a partir da gravura e a colagem combinando desenho com gravura antiga, reforçando a idéia de decadência. A gravura antiga, nesse contexto, ganha novo vigor e evoca um conteúdo de glamour e poder, em contraste com o traço caricaturizante, que desfigura e aponta um semblante senil.

 

Resumindo: percebemos nessa seqüência de ações um movimento de investigação formal, a escolha de uma figura emblemática, a manipulação de suas formas e a construção de uma composição a partir de contrastes que comunicam claramente o conteúdo desejado, de decadência do império romano.

 

Assim como os intelectuais franceses e seus discursos, a tipificação adquiriu um caráter emblemático. O soldado romano representa simbolicamente o império. O carimbo do homem representa um discurso sobre o ser. Uma vez encontrado o emblema, a manipulação das formas adquire um contexto irônico.

 

O emblemático é compreendido aqui como uma tentativa de figurar uma generalização de sua categoria. Uma idealização. Massironi (1982, pág. 62) ao se referir ao conteúdo emblemático das imagens taxonômicas, explica que são construídas propositadamente para exporem os atributos visivos sobre os quais se poderá basear um discurso de ordenamento e sistematização morfológica. Nesse tipo de representação, são excluídos os traços de desvio da norma. Cada indivíduo está para a espécie inteira, pois são excluídos seus traços singulares.

 

Embora a ilustração de artigos de jornal tenha uma função totalmente diferente da ilustração taxonômica, pois não tem como função comunicativa apresentar uma realidade externa e não presente, mas convidar o leitor a entrar no texto, apontando aspectos relevantes de seu conteúdo previamente selecionados, é de se notar que nos exemplos abordados, Carlos explora a carga simbólica das imagens já prontas dos carimbos  e gravuras, se valendo de seu grau de generalização.

 

Nem sempre o ilustrador se deleita com o texto

 

Os exemplos abordados até aqui mostram uma relação entre o texto e a imagem marcada pelo comentário bem-humorado, levemente ácido, mas que tratou de ampliar uma acidez já latente no próprio texto (a decadência do império romano, o diletantismo dos intelectuais).

 

No entanto, nem sempre o ilustrador se deleita com o texto. E a imagem acaba sendo mais uma ironia em relação ao texto do que proveniente dele. É o caso da pauta do dia 16/09/1989, intitulada O discurso filosófico da modernidade, de Juergen Habermas. O texto explica as diferentes teorias – neoconservadoras e anarquistas, acerca do conceito de pós-modernidade, avaliando que ambas se distanciaram do conceito de modernização de Max Weber, construído em torno de um horizonte de categorias racionais, e suspeitando que, embora o pensamento pós-moderno se limite a atribuir a si mesmo uma posição transcendente,  continuam presas a tradições teóricas de negação da ilustração.  

 

O texto trata de um assunto bastante abstrato, pois avalia teorias que negam outras teorias, dificultando qualquer associação com imagens. Carlos comenta a sua interpretação:

 

“Às vezes eu achava o texto muito cheio de história e tal... teve um que eu fiz de propósito, assim, um bando de retardados, todo mundo com a calça igual...É porque eu achei aquela matéria, aquilo, verborragia européia. Eu exercia uma total liberdade.”

 

Utilizou o mesmo carimbo – de uma calça comprida com sapato e cinto - e desenhou em cima das calças homens de diferentes estaturas, inclusive um auto-retrato (o terceiro da esquerda para a direita). Carlos, amante da cultura chinesa, não resistiu à tentação de interpretar todo o resumo da tradição teórica européia, proferido por Habermas, como uma calça-camisa de força.

 

Um homem sem qualidades vive a sua vida

 

Essa pauta, de 30/09/1989, reproduz um trecho do livro de Robert Musil (1880-1942), O homem sem qualidades.

 

O texto é literário, e mostra as digressões de um homem que acaba de se despedir de uma mulher. Ela está prestes a se divorciar e o homem se perde em pensamentos moralistas, prevendo futuros conselhos que daria a ela, conservadores. Sem perceber que está obcecado por ela, vai parar no ponto final do bonde. “Nada mais saudável para um homem do que esquecer de si mesmo”, ele conclui.

 

Essa ilustração é notável pela sua beleza. Também a diagramação é um tanto feliz, pois as colunas acompanham a divisão do desenho, fazendo referências simultâneas à linguagem da H.Q., da diagramação dos jornais e da divisão dos vagões de um bonde.

 

A ilustração é produto do encontro do desenho de uma mulher e sua sombra sobre a imagem ampliada de uma gravura antiga representando um bonde. A colagem ocorre num enquadramento feliz, pois o recorte do trem ressalta o passageiro que contempla, em oposição a um outro passageiro de costas, e oculta a frente do bonde e o motorista. Reforça a relação entre a mulher – enorme – do primeiro plano e o homem que o nosso olhar encontra, impelido pela força da diagonal da diagramação. Com a leitura do texto percebemos que essa mulher é produto da divagação desse homem, perdido em pensamentos em torno dela.

 

Uma série de esboços mostra o amadurecimento da representação dessa mulher. Desde o início, já estava indicada a posição do rosto, de perfil, o dedo indicador levado à boca, a cabeleira cheia e curta. Uma tentativa foi feita no sentido de indicar uma contraluz, uma manga bufante, e foi descartada. No entanto, a sombra projetada que aparece no terceiro esboço foi mantida, enquanto o desenho final se preocupa mais com a textura dos cabelos, da roupa e do sombreado da pele. Infelizmente a última versão, com a montagem, que provavelmente foi feita em xerox, não foi preservada.

 

A textura retilínea da imagem da gravura, bastante ampliada, contrasta com a delicadeza e diversidade de direções dos traços da mulher. Indica em si o contraste de temperamentos entre esse homem normativo e essa mulher atormentada e triste.

 

(...)

Deformar:

 Vamos ver, no próximo exemplo, o recurso expressivo da deformação realizado com xerox, grades e anamorfoses, por Carlos Matuck.

Algumas ilustrações de Carlos Matuck para artigos e resenhas sobre escritores e filósofos, para o caderno de literatura da Folha de S.Paulo, são focadas na representação de seus rostos, metamorfoseados, desmanchados numa atmosfera, como se o reconhecimento do personagem (geralmente facilitado pela menção ao seu nome no título) já encaminhasse o nosso olhar para o reconhecimento de sua obra. A deformação das figuras dos escritores e filósofos aproxima e funde com a sua obra.

É o caso da ilustração para o artigo de Didier Eribon, Jornalista Escreve sobre a Vida de Foucault, escrito por para a Folha de São Paulo. O autor do artigo sustenta que a obra do filósofo como um todo procura desvendar formas sutis de controle nas sociedades modernas e comenta sobre as circunstâncias em torno da publicação da conhecida obra de Foucault, As Palavras e as Coisas. Explica que nesse livro procura-se verificar “em que momento apareceu, na cultura ocidental, a interrogação sobre o homem como objeto de saber”.

Para esse trabalho, foi utilizada como referência visual uma fotografia de Foucault, para um estudo de sua tipologia. Num primeiro desenho, o perfil do escritor e suas características físicas (careca, óculos) foram evidenciados, sem exagero, embora a posição de perfil e a careca acentuem a impressão de cabeça grande, forma associada a inteligência.

Na sequência, uma grade foi utilizada para deformar o retrato de Foucault, aumentando a impressão de cabeça grande e conferindo ao retrato do escritor uma expressividade mais atormentada. A utilização do recurso da grade para deformar é freqüente no trabalho de Carlos, inclusive nos seus murais.

Nesse caso, a grade e a anamorfose propõem um jogo entre a estrutura ortogonal e os seus limites até o limiar da subversão. A decupagem em três colunas acentuou a deformação, conferiu movimento e jogo visual de simultaneidade de pontos de vista, com planos de enquadramento fechados e ao mesmo tempo o plano aberto dos três retângulos somados.

Depois da deformação, foi criada uma nova versão com linha de contorno, decomposta em três colunas e alinhadas com as seis colunas do texto. Na seqüência, foi adicionada sombra com a textura de carimbos de letras. Unidades discretas de construção de sintagmas verbais, as letras são o conteúdo e ao mesmo tempo a textura e as sombras dessa “grande cabeça”. O elemento facilmente reconhecível, a letra carimbada, ganha dimensão simbólica. A estratégia de deslocamento do signo (letra) do seu lugar habitual,    assim como as deformações, provocam estranhamento e desencadeiam movimentos associativos.

Devemos convir que seja um tanto pertinente para um desenho de um rosto de Foucault a inserção de um jogo visual envolvendo estrutura, limite, subversão e diversidade de ângulos. A grade estabelece um controle sobre a deformação da representação do homem, feito de letras (que fazem palavras e aqui fazem rostos). O pensamento de Foucault é conhecido pelas suas análises de “dispositivos de poder”, que são analisados como um conjunto multilinear, um novelo ou meada de diferentes naturezas que nos atravessa e envolve. Na obra de Foucault As Palavras e as Coisas, o autor “vê na monstruosidade uma espécie de ruído de fundo, o murmúrio incessante da natureza” (SODRÉ e PAIVA, p. 55).

A representação do rosto do filósofo deformado possibilita seu reconhecimento e também o estranhamento. O repertório cultural de Carlos é o seu diferencial. No lugar de um retrato do escritor, apresenta uma leitura visual da atmosfera de sua obra.

Carlos lamenta não ter enviado para publicação a versão apenas com carimbos, sem as linhas. Considera mais ousada. A versão sem linhas ressaltaria as sombras e luzes proporcionadas pelos carimbos e resultaria numa representação do escritor mais desintegrada. Na ocasião, a escolha pela versão com linha de contorno foi uma decisão que implicava mais fácil reconhecimento da figura de Foucault (maior redundância), portanto menor esforço de assimilação do leitor.

 

Não foi o caso da ilustração Chacais e árabes, um enigma de Kafka, sobre um trecho da obra de Kafka.

Com recursos de xerox, Carlos deformou a fotografia do escritor várias vezes, até ficar no limite do reconhecível. Utilizou então esse xerox deformado como referência, e desenhou o rosto de Kafka com um aspecto que parece metamorfoseado em nuvens. Na composição do desenho, lidou com três grupos de figuras citados no título: chacais e árabes, num ambiente carregado pelo olhar penetrante e desmanchado do rosto de Kafka, metamorfoseado em céu carregado.

As deformações dos rostos dos escritores e filósofos apresentadas por Carlos, no lugar de apresentarem aspectos ridículos ou grotescos, procedimentos típicos da caricatura, apresentam cenas representando as figuras dissolvidas na atmosfera de suas respectivas obras.

 

É notável a opulência de espaços que a Folha de São Paulo destinava, nessa época, à ilustração. Essa imagem ocupa cerca de 40% dessa página, o que possibilita toda essa expressão das texturas e a sofisticação da diagramação, que ressalta a mancha cinza do texto como parte da imagem.  No entanto, essa não é a realidade dos jornais nos dias de hoje. A generalização dos recursos da informática tem sido inversamente proporcional ao espaço dedicado às ilustrações de qualidade, nesses periódicos.

 

 

Profa. Dra. Laís Guaraldo

UFRN

 

Trechos da dissertação de doutorado – PUC-SP

2007

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