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TEXTOS

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Waldemar Zaidler, Carlos Matuck

(ao fundo, Alex Vallauri)

 

Depois de Sérgio e Leda[1], o périplo paulista daquele dia continuou no ateliê/galpão onde Waldemar e Carlos, o Turcko, arquitetam a sua sanha grafiteira (os dois, aliás, são arquitetos de profissão)[2]. O que mais me fez gosto no encontro, que se completou com uma sessão de slides e outra de demonstração dos modos e materiais acionados no trabalho deles, foi o jeito solto e sério de me contarem o seu dia-a-dia – melhor ficaria o seu noite-a-noite – de grafiteiros. A coisa toda começou lá pelo início de 1981, quando Carlos se aproximou de Alex Vallauri, que nascera na Etiópia em 1949 e viera para o Brasil com 16 anos de idade. Desde 79, Alex andava povoando os muros paulistanos com a figura da Bota Preta, por ele próprio classificada como "a moça que passeia por São Paulo". Essa figura e outras imagens-silhuetas, sempre de uma cor só, geralmente o preto, proporcionavam uma leitura rapidíssima, quase automática, ao passante que desse com elas.

 

Foi o lado instantâneo da comunicação, como uma piscadela paqueradora de surpresa, que mais mudou com a associação de Alex e Carlos. A imagem, detalhando-se e adquirindo uma complexidade antes inexistente nela, já não permitia o mesmo tipo veloz de apreensão ótico-emotiva em plena passagem, na caminhada ou no trânsito. Exigia parada. É que Carlos vinha de uma minuciosa pesquisa com carimbos e colagens, em linha contrária ao caráter chapado e sumário das silhuetas obtidas por moldes rudimentares. Aderindo à atração dos graffiti, pôs-se a preparar, no entanto, estênceis altamente pormenorizados, que não se prestavam mais, por exemplo, à multiplicação desenfreada da Bota. E um novo problema surgia com eles: como o tempo para transferir o molde ao muro ficou sendo maior, a polícia sempre acabava chegando no meio da história para fazê-la entrar pelo cano. Aplicar a Cartola Mágica a um canto de muro qualquer, com os seus mil badulaques pulando fora do chapéu-clichê de Mandrake, era uma aventura que às vezes nem a destreza circense conseguia levar até o fim.

 

Aí, ainda em 81, o Waldemar também entra na dança. Como, pessoalmente, ele não gostasse de pichar (correria, cheiro forte da tinta, sujeira geral), a solução foi entregar-se, junto com Carlos, a uma pesquisa profunda em torno da preparação dos estênceis, ou seja, das matrizes a utilizar para a execução final dos graffiti. O avanço técnico resultou enorme, conduzindo-os ao estêncil de traço contínuo e à aplicação de fundos de cores diferentes. Com isto, a área ocupada podia aumentar bastante, do que decorreu pouco a pouco um certo jeito de mural. Era o que bem exemplificava o painel Os Músicos, dessa época: uma divertida, repleta e colorida festa em panorama, acoplando estênceis vários, traçado a mão livre e jatos de tinta em spray. Em 82, com a ida de Alex para New York, o trabalho de Waldemar e Carlos desenvolveu-se cada vez mais segundo a sua preferência pela sofisticação da matriz, rumo às grandes superfícies do mural.

 

Sempre juntos, criaram um repertório inconfundível, aplicado às mais diferentes situações: trabalhos clandestinos, à noite, de cobertura dos muros da cidade; ações diurnas, de comum acordo, como os painéis El Trio los Panteras e las Tres Panteretas ou (série completa) (na fachada do MAM paulista)[3] e Paisagem com Comboio dos Insensatos ou (série completa) (na rua Teodoro Sampaio, para o Teatro Lira Paulistana); peças de encomenda para interiores (ateliês de artistas amigos, restaurantes, SESC Pompéia e saguão do teatro da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, entre outros); imagens de campanha eleitoral, em 1982, inclusive uma Multidão para diversos candidatos; publicidade de lojas de espécie vária; e, como afinal são mesmo artistas, material para exposições em galerias, a mais recente sendo o Circo – Grande Exposição Gymnástica, Eqüestre, Acrobática, Zoológica e de Variedades – que montaram em janeiro de 84 na Arte Contemporânea, de Thomas Cohn, no Rio.

 

Esse repertório já acumula uma infinidade de imagens, que se repetem isoladas ou que se vêem reunidas em inesperadas novas configurações. Boa parte delas deriva da própria cachola de seus manipuladores: peixe, índio, bruxa, sanfona, guitarra, trem e passageiros, avião, vulcão, platéia, pauta musical, andorinha, preso atrás das grades, enforcado, porco assado, pincel, máquina de escrever, etc. Outras baseiam-se em catálogos de carimbos antigos: baleia, acrobata, peão, multidão, rádio, máquina fotográfica, tesoura ou caneta. E uma terceira série é herança de cuca alheia: o Reizinho de Otto Soglow; o jacaré, o cachorro e o ciclista, de Saul Steinberg; o Tintin, de Hergé; e o capitão, dos Sobrinhos do Capitão, de Rudolph Dirks. Ia esquecendo: há também o acrobata, do Circo de Seurat[4]. Todas elas, imagens que pertencem muito mais ao domínio do lirismo e do humor (com, no máximo, uma pitada de ironia) do que à abertura de comportas para a avalancha desrepressora que está na origem dos verdadeiros graffiti.

 

Assim, o inventivo trabalho de Waldemar e Carlos enquadra-se mais numa linha de painéis urbanos, que já teve entre nós o seu passado (por exemplo, com as Zebras de Cláudio Tozzi, em meados da década de 70) e que está tendo agora um presente reavivado, inclusive nos murais cariocas encomendados a artistas pela FUNARJ. Reflete uma atmosfera de abertura, que permite sair por aí com tintas e pincéis na mão, e não tanto aquele clima de sufocamento da cidade-monstro que levou ao apocalipse autenticamente grafiteiro de New York, há uns 10 anos atrás. No texto para o livro Watching My Name Go By, com fotos dos graffiti nova-iorquinos tiradas por Jon Naar, Norman Mailer podia dizer, em 1974: "No possível fim da civilização, o nosso instinto exaurido, inteiramente poluído, sonha com alguma purificação que não há jeito de encontrarmos. Por todo o mundo, impulsos tribais começam a subir à tona".

 

Mas como há sempre uma FUNAI por perto, vigilante, os tais impulsos civilizaram-se. Os velhos graffiti, misturados a novos, continuam a viajar por fora e por dentro dos vagões do subway, amedrontando ou divertindo a gente, porque não deu mais para apagá-los a cada onda do Ego a gritar pela cidade. Porém, com o tempo, a máquina do consumo soube criar os graffiti e os grafiteiros que lhe convinham. A costa Oeste, amiga das curtições solares, tornou-de o paraíso dos graffiti muralizados (quase ia dizendo moralizados) e de comportamento exemplar. E Keith Haring, um grafiteiro convicto que entrou para a vanguarda internacional da arte (ele tem a idade média da nossa Geração 80 e mora em New York), aí está para provar que um dia, parece que fatalmente, tudo o que era selvagem e anônimo na origem vira civilizado e assinado, domesticado e elegante o suficiente para poder freqüentar os melhores salões de arte.

Waldemar e Carlos ficam, portanto, entre esse comportamento nota 10 e a nova indisciplina da intervenção urbana que se está vendo agora tomar conta da França através de artistas mais ou menos anônimos. Paris vive atualmente uma onda de grafitagem entre o gozativo e o selvagem. Um dia desses, ao sair de uma estação de metrô, dei de cara com um fantasma tentando atravessar a envelhecida parede da igreja em frente. Era mais uma aparição da turma de fanatasmas que Jérôme Mesnager faz há dois anos por toda porta ou parede que lhe agrade durante seus passeios de assombração noturna. Cobre-se de tinta branca e depois se mexe sobre a superfície, como uma espécie de carimbo ou paródia, consciente ou não, das antropometrias de Yves Klein. Sua aventura é a jato: "Quando encontro a parede ou a porta convenientes, tudo se resolve depressa. Salto de encontro a elas, na pose que quero representar, e depois retoco rapidamente. Em média, uma silhueta me toma 26 segundos".

 

E, dentro do metrô, muitas outras coisas se passam no mesmo gênero. O marselhês Claude Costa escolhe sorrateiramente o momento em que, de portas fechadas, o único público que arrisca ter acompanhando a execução de seu trabalho é o dos que fazem a  limpeza das plataformas ou o conserto dos trilhos. Aí, com montes de tubos de spray,  recompõe a seu modo os cartazes publicitários. De repente, uma menina sorridente e pasteurizada, comendo biscoitos Lu, pode ser acariciada ou abocanhada pelo Minotauro, uma das figuras-fetiche de Costa, para a qual vale esta outra frase de Mailer: "Estamos  de volta ao homem das cavernas e à sua pintura das cavernas. Sua mão traça o contorno do animal, desafiando os deuses que o acompanham com o olhar". Por isso, é preciso cuidado quando se chama de graffiti o que Waldemar e Carlos fazem. Sua competência é outra e seu objetivo também. Tomemo-los como os artistas de um instante que quer falar por todos os meios e poros, sem que estes sejam necessariamente os da reinvidicação e os da agressão.

 

Roberto Pontual

 

Explode Geração! Avenir Editora, Rio de Janeiro, sem data

(o livro é de 1984)

 

[1] Sérgio Romagnolo e Leda Catunda.

[2] O autor se enganou: Waldemar formou-se na USP mas pouco exerceu a profissão; Carlos entrou mas  nunca se formou.

[3] Na verdade, nós dois fomos convidados por Vallauri para acompanhá-lo nesta empreitada, conseguida por ele. Foi um dos primeiros grandes trabalhos que realizamos os três juntos.

[4] Imagem criada e trazida ao grupo por Alex Vallauri.

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