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TEXTOS

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São Paulo, 6 de outubro de 2022.

Venerável Mestre Frenhofer,

Permita-me tratá-lo informalmente, uma vez que os motivos pelos quais lhe escrevo são de natureza pessoal, ainda que o assunto não me afete diretamente, mas sim a meu bom amigo Carlos Matuck que, assim como você, é pintor.

            Siderado pela novela que você protagoniza, A Obra-Prima Ignorada, e impulsionado pelas questões nela levantadas, Carlos estilingou-se da literatura à pintura, inicialmente em direção um tanto incerta, mas em pouco tempo ajustando o rumo. Desde então, encasquetou em retratá-lo; e o fez obstinadamente ao longo de praticamente três anos, dos quais dois foram marcados pelo isolamento imposto pela pandemia que fechou o mundo em 2020 e 2021. Nesse período gerou um consistente conjunto de cerca de 400 trabalhos, dos quais ele próprio, com meu apoio, selecionamos 62 para integrar a exposição Frenhofer Retratado. E tudo indica que esse novo caminho apenas começou a ser percorrido.

            Permita-me também, Frenhofer, tratá-lo com franqueza e casualidade. Afinal, você sequer existiu! Inventado em 1831, seu próprio criador, Honoré de Balzac, fez com que você tacasse fogo em toda sua obra e morresse em seguida: bastou-lhe para tanto o acréscimo de um último parágrafo com cerca de 30 palavras à edição original da novela – publicada com o título Mestre Frenhofer, em 1831 no jornal l‘Artiste, – na edição revisada que veio a público em 1837 em Etudes Philosophiques, com o título A Obra-Prima Ignorada (Le chef-d’oeuvre inconnu). Talvez você não saiba, mas essa novela tem sido fonte historiográfica diante de questões da arte desde o século xix até os dias de hoje, cutucando ensaístas e fascinando pintores como Cézanne, Picasso e, naturalmente, o colega Matuck.

            Nesse trânsito entre o literário e o pictórico, Carlos expandiu suas pesquisas: derivou procedimentos técnicos, recortou repertórios, diversificou a natureza de suas referências, reinventou suas sintaxes chegando a resultados contrastantes com o que vinha fazendo até então, trazendo características singulares, ainda que derivadas de fases anteriores, o que reforça a tese de que, em arte, nada cai do céu.

            Nessa nova fase das pinturas de Matuck ressoam ecos das questões que, na novela, animam seus diálogos com os pintores com os quais você contracena, os reais Porbus e Poussin, questões que alimentam seus posicionamentos artísticos e desesperos de pintor vivenciados no século xvii; veem-se também questões que afligiram tanto o narrador quanto o autor da novela, Balzac, que, de acordo com diversos relatos, discutia-as em sua comunidade artística na primeira metade do século xix, período seminal para muitos desdobramentos ainda hoje em processamento.

            Pois é sobre os meandros dessa nova fase da pintura de Carlos e da exposição que dela resultou, tão influenciada por você, que quero lhe contar e, se possível, saber sua opinião. Quem sabe o amigo ainda tem jeito?

            Veja que a obstinação de Carlos em pintar retratos de um ser imaginário, fictício, não é propriamente novidade. O intrigante é a maneira como ele o faz, e desconfio que a espécie de transe que o toma no ato dessas pinturas seja da mesma ordem da desvairada paixão que você nutriu por Catherine Lescault, mulher-musa-quadro batizado(a) A Linda Pentelha[1], pintada às escondidas ao longo dos dez últimos anos de sua inexistência sem permitir que absolutamente ninguém o(a) visse:

 

Quando você faz um quadro para a corte, não põe nele toda a sua alma. A única coisa que se vende aos cortesão são manequins pintados. Minha pintura não é uma pintura, é um sentimento, uma paixão! Nascida em meu ateliê, ela tem de ficar aqui, virgem, e só sair daqui vestida. A poesia e as mulheres só se entregam nuas a seus amantes. Podemos possuir as figuras de Rafael, a Angélica de Ariosto, a Beatriz de Dante? Não! A única coisa que vemos são suas formas! Pois bem, a obra que está lá em cima trancada é uma exceção em nossa arte. Não é uma tela, é uma mulher!

 

           

            Finória prosopopéia! Você, Frenhofer, ecoa Pigmalião e antecipa Gepetto! O que absolutamente não se estranha, pois Balzac, ele próprio um romântico da primeira metade do século xix ambientado num mundo em que convivem Delacroix – considerado por Baudelaire o último dos renascentistas – e Turner, que prenuncia a arte moderna, situa a ação da novela no início do século xvii, e a insere em um universo de homens reais, personalidades notáveis do imaginário da história da pintura.

            E entre os inúmeros pintores por você evocados – a começar por Mabuse, de quem você se proclama único e verdadeiro discípulo – destacam-se aqueles com os quais você interage: o já mencionado Porbus, pintor arcaico que realmente viveu entre 1570 e 1622, e o clássico Nicolas Poussin, contemporâneo seu, 24 anos mais jovem que Porbus, falecido em 1665. Além desses dois homens, há duas mulheres. Uma delas, Catherine Lescault é duplamente fictícia; a outra, Gillette, belíssima amante de Poussin, é personagem assim como você. A primeira não lhe sai da cabeça nem do espírito, a segunda, bela entre as belas, ao desnudar-se ao lado de Catherine possibilita a você compará-las e confirmar a absoluta e superior perfeição de sua pintura. Gillette lhe é apresentada justamente quando, desesperado, pensa em correr mundo em busca de alguma modelo que pudesse iluminar uma última pincelada, a que daria o sopro de vida à sua amada. A importância dessas mulheres na trama e em sua tormenta não passaram despercebidas a Carlos, que fez delas matéria de vórtices para que neles seus retratos habitassem.

            E por falar em Carlos, voltemos à obstinação dele em retratar um personagem fictício, na contramão da iconografia mitológica, religiosa, histórica. Digo na contramão porque Carlos escapa da mimese, desvia do natural, quase abandona o figurativo, apostando na capacidade de construção imaginativa a partir de indícios absconsos resultantes de releituras que beiram reinvenções abstracionistas de pinturas figurativas já existentes que, de algum modo, se aproximam do universo da novela.

            Essa novidade, Frenhofer, é apenas uma entre as muitas influências que você exerceu sobre meu amigo, instigando o já referido amadurecimento em seu trabalho com a reinvenção de procedimentos técnicos e abordagens poéticas.

            Por exemplo: desde sempre Carlos privilegiou referências fotográficas para compor seus trabalhos. Mesmo nas fases iniciais de sua pintura, quando gravuras ilustrativas e histórias em quadrinhos eram importantes referências, as fotografias estavam presentes. Admirador de fotógrafos e colecionador de fotos familiares, costumava tomá-las como ponto de partida para uma figuração que, quase sempre, tinha um quê de caricatural, fosse no traço, fosse no assunto, fosse na situação. Pois após ter sido fisgado por sua história isso mudou, embora o humor permaneça, ácido, mordaz. As referências utilizadas agora para a produção dos trabalhos são pinturas e, muita vez, os próprios pintores citados por você ou seus contemporâneos, mas não se atendo apenas a eles. Nos trabalhos expostos estão Mabuse, Rembrandt, Chassériau, Manet, Watteau, Picasso. Curiosamente Poussin foi preterido, suponho que por causa da total ausência de boa vontade, da parte dele, em reconhecer algo além do pé de sua Catherine. Ademais, também por sua causa levou um belo pé da bela Gillette.

            Esses novos procedimentos técnicos e construtivos variam de acordo com os diferentes aspectos explorados em cada série de experimentos – a experimentação seriada com um determinado instrumento, paleta de cores, gestualidade, é também uma característica de fases anteriores que se mantém, evocando, em paralelo ao que escreve Barthes sobre fotografia, a ideia de linhagem, a busca, pela insistência, de uma alegoria da persistência da espécie. Ao mesmo tempo, há o comum entre os elementos constituintes das séries, o que oferece ao vedor o prazer da busca de enigmáticas diferenças entre iguais, acirrando a disputa entre o olhar e o ver.

            Os aspectos explorados são sugeridos por passagens da novela, por um pintor citado, ou ainda de obras de pintores que, como o próprio Carlos, foram impressionados por sua história. Mas, seja qual for a referência, ela é fundida a Gillette e Catherine, e é desta confusão que emerge sua careta frenhofiana.

            E é aí que está a graça, pois não importa qual seja a careta resultante do imbróglio, ela evoca as pistas que Balzac dá sobre sua personalidade e aparência:

 

Um velho subia a escada. Vendo sua estranha indumentária, a magnificência da golilha de renda e a imponente segurança do andar [...], havia algo de diabólico naquele rosto, sobretudo um não sei quê que atrai nos artistas. Imagine uma testa alta, volumosa, proeminente, terminando num nariz pequeno, achatado e rebitado como o de Rabelais ou Sócrates; lábios sorridentes e enrugados, um queixo breve, orgulhosamente empinado, envolto numa barba grisalha e pontiaguda; olhos de um verde marinho, aparentemente esmaecidos pela idade mas que, em contraste com o branco perolado no qual flutuava a pupila, no auge da cólera ou do entusiasmo devia por vezes lançar faíscas magnéticas. O rosto, aliás, mostrava-se singularmente carcomido pelas fadigas da idade e mais ainda por esses pensamentos que sulcam tanto a alma quanto o corpo. Os olhos não mais tinham cílios e mal se viam os traços de supercílios acima das arcadas salientes. Ponha essa cabeça num corpo delgado e débil, envolva-o num rendado de brancura reluzente e trabalhada em arabescos, jogue sobre o gibão negro usado pelo homem uma pesada corrente de ouro e terá uma imagem imperfeita desse personagem ao qual a luz fraca vinda da escada emprestava uma cor fantástica, como se uma tela de Rembrandt caminhasse silenciosamente e sem moldura na sombria atmosfera criada por esse grande pintor.

 

A tal escada leva à porta da morada de seu discípulo Porbus, onde o jovem Poussin, que ainda não conhece nenhum de vocês, aguarda, com esperança de ser apadrinhado por Porbus, sem saber se será ou não. Essa sua primeira aparição nesse clima de incerteza, acho eu, traspassa toda a exposição.

            Apesar de Frenhofer estar no título da exposição e de todas as pinturas, sua face não se dá a ver. Ao que parece, Carlos é mais tocado pela admiração de Poussin por seu espírito do que pela descrição física oferecida por Balzac.

            Em algumas das pinturas monocromáticas os rostos são mais prontamente identificáveis, sobretudo nas de menores dimensões. Nestas, suas caras surgem de repente, mas logo se descobre que o que parece um rosto é o resultado de um emaranhado de catherines e gillettes que se multiplicam e, sabemos, não saem de sua cabeça. E tudo isso se embaralha aos desenhos que povoam planos de fundo. Aos poucos, porém, toda essa bagunça se faz organizar, menos por coerência sintática e mais por potência poética.

            Ao contemplar o conjunto de retratos, particularmente aqueles desenvolvidos sobre páginas de enciclopédias com ilustrações de verbetes, não se vê semelhanças entre feições, como seria de se esperar de retratos de um mesmo sujeito reunidos em uma exposição. Porém, uma vez franqueado livre voo à fantasia e acionadas as faculdades imaginativas, constata-se que as muitas diferenças são insignificantes diante da semelhança fundamental: a constância de ninfas dançantes, esperneantes, oferecidas. Essa fantasmática metamorfose é limiar para uma dimensão outra na qual a feição percebida se faz imprimir na memória como que por ferro quente, cara gravada em baixo relevo.

            Talvez daí venha a incerteza sobre a natureza desses retratos quase monocromáticos: essa percepção fixada na lembrança se traduz em linhas, desenho. Para Carlos, entretanto, não são desenhos. São pinturas, e concordo com ele. Primeiramente pelo modo como são feitas, um procedimento que alude à técnica das três tintas: o que seriam as claras e médias aguadas inicialmente lançadas para sugerir formas e luzes são, nesses trabalhos, as próprias tonalidades, texturas tipográficas, hachuras oferecidas pelas páginas de enciclopédias escolhidas como suporte para a pintura. Com tinta plena o pincel percorre os caminhos decididos pelo artista definindo formas e figuras. Esse procedimento encontra também paralelo nas pinturas-caligrafias chinesas que, para Carlos, são fetiche muito antes de você e sua novela se imiscuírem no panteão das encanações de meu amigo. Não deixa de ser a retomada de uma das questões que, sabemos, apoquentou-lhe amargamente por muito tempo, conforme Porbus relata a Poussin:

 

Frenhofer é um apaixonado por nossa arte da pintura, alguém que vê mais alto e mais longe que os outros pintores. Meditou profundamente sobre as cores, sobre a verdade absoluta da linha. Mas, de tanto pesquisar, chegou a duvidar do próprio objeto de suas pesquisas. Em seus momentos de desespero, diz que o desenho não existe e que com as linhas só é possível fazer figuras geométricas, o que é radical demais porque com a linha e a cor preta pode-se fazer um rosto – o que prova que nossa arte, como a natureza, compõe-se de uma infinidade de elementos: o desenho fornece o esqueleto, a cor é a vida, mas a vida sem esqueleto é algo mais incompleto do que o esqueleto sem vida. Enfim, há algo de mais verdadeiro que tudo isso e que é tudo para um pintor: a prática e a observação. […] Os pintores só devem meditar com os pincéis na mão.

 

Curiosa particularidade dessa série de retratos quase monocromáticos – “quase” porque há sim muitas cores, ainda que de baixíssima saturação – é o fato de neles haver clichês impressos, desenhos ilustrativos e mapas, habitantes de páginas de enciclopédias que, criteriosamente justapostos, organizam a pintura, não apenas como mero substrato neutro ou cumprindo o papel das referidas aguadas, mas como esqueletos, pontos de partida para desenvolvimentos pictóricos e semânticos.

            A opção por utilizar mapas como esqueletos, segundo confidenciado pelo próprio Carlos, foi despertada pela passagem da novela em que você, profundamente abatido e já sem esperança de encontrar alguma modelo que permitisse a correção de alguns detalhes que separavam sua adorada Catherine Lescaut da perfeição absoluta, comunica a Porbus sua decisão de viajar:

 

Vou para a Turquia, para a Grécia, para a Ásia, procurar uma modelo e comparar meu quadro com outras propostas da natureza. Talvez eu encontre por lá a própria natureza. Às vezes tenho medo que um sopro possa despertar essa mulher e ela vá embora.

 

Folheando nas enciclopédias antigas cartas geográficas, Carlos o imagina em vários pontos de sua peregrinação, ou melhor, vê pedaços seus, partes de seu rosto, ou melhor ainda, partes da superfície tegumentária de sua cabeça nas formas cartográficas: um continente é testa, uma península nariz, uma ilha olho. Identifica essas partes em mapas diferentes, criteriosamente os seleciona e os justapõe montando um esqueleto para a cabeça, caveira a ser encarnada e recoberta com catherines e gillettes fazendo as vezes de pele.

            O processo é semelhante quando Carlos procura nas enciclopédias por páginas ricamente ilustradas com um tipo de desenho que o encanta desde a infância e, aqui, é mais um elo visual entre a fase atual de seu trabalho e as anteriores; mas agora tais clichês são mais semânticos que visuais. Por isso concordo com o entendimento dele de que esses retratos são mais pinturas que desenhos, e penso que você, Frenhofer, também concordaria. Há desenho, esqueleto, e há cores, vida, embora a cor dominante, além das nuances oferecidas pelos próprios papéis impressos, seja o negro, que só não é cor para físicos newtonianos.

            Em suas pinturas, Frenhofer, naquelas em que você aplica o que diz ter aprendido com seu mestre Mabuse e que se destinam aos cortesãos, contam os últimos toques e retoques, como fica explícito quando você corrige a obra-prima Maria Egípcia de seu discípulo Porbus. Fica patente seu entendimento da supremacia da cor sobre o desenho:

 

Você pairou indeciso entre os dois sistemas, entre o desenho e a cor, entre a fleuma minuciosa, a rigidez precisa dos mestres alemães e o ardor resplandecente, a alegre abundância dos pintores italianos. [...] Você não conseguiu nem o encanto severo da secura, nem as ilusórias mágicas do claro-escuro. [...] A missão da arte não é copiar a natureza, mas expressá-la! Você não é um vil copista, você é um poeta! [...] Foi o que fez Rafael, [...] a superiodade dele vem do sentimento interior que, nele, parece querer romper a forma.

 

Ainda assim, considera a tela de Porbus mais valiosa que “as pinturas desse impostor que é Rubens, com suas montanhas de carnes flamengas polvilhadas de vermelhão”, e aponta que pelo menos nela há “cor, sentimento e desenho, os três componentes essenciais da arte”.

            Entretanto, quando você decide apresentar seu quadro-musa-mulher para seus amigos, encontra-se frente a frente com a conclusão, evidentemente por desígnio balzaquiano, do fracasso de sua pintura: eles não veem nada nela além de “cores confusamente espalhadas umas sobre as outras, contidas por uma multidão de linhas bizarras que formam uma muralha de pintura”. Identificam apenas, num dos cantos, um pé, um delicioso pé, um pé vivo que emerge da caótica neblina, preservado da destruição.

            Parece-me que giram em torno desse fracasso os questionamentos feitos em Frenhofer Retratado. Para além disso, é um retumbante alerta contra o fracasso da imagem em nossos tempos, que sucumbe arrastada por desdobramentos históricos da modernidade, de cujo nascimento sua história é alegoria.

            Será que, se você tivesse tido um pouco mais de paciência seus amigos Porbus e Poussin não acabariam por ver a dona daquele pé por detrás da muralha de pintura? Bem, reconheço que para você a espera seria por demais entediante, pois, para que isso acontecesse, como de fato aconteceu, demoraria ainda um bom tempo, então retiro a questão.

            Carlos e eu lamentamos tanto o fogo em sua obra quanto seu desaparecimento.  A incompreensão, que não o incentivou em nada, certamente em seu tempo não era percebida como hoje, um tempo em que tudo tenta convencer a todos que vida e mundo têm explicação, em que o artíficio, ao invés de mágico, quer se naturalizar. Isso não nos parece bom, e talvez muralhas de tinta possam contribuir para preservar alguns mistérios e enigmas para que, ao menos na pintura, tenhamos algo a decifrar.

            Despeço-me com respeito e admiração, no aguardo de sua manifestação.

            Waldemar Zaidler     

 

[1]  Segundo Teixeira Coelho, La Belle Noiseuse (A Linda Pentelha) foi o título inicial dado por Balzac à pintura, alterado em edições ulteriores.             

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